Projeto Fábula no Atacama (II)

Outras Peças Literárias

Por Fernando Soares Campos (*)

Sempre que posso, retomo o Projeto Fábula no Atacama (PFA), que virá a ser o diálogo entre um urubu faminto e um preá agonizante, por meio do qual pretendo formular lógico preceito moral, um aconselhamento capaz de orientar o relacionamento do ser humano com a sua própria natureza animal — a síntese do procedimento a ser adotado quando alguém for submetido a uma prova de resistência psicobiológica, estando imbuído dos princípios inatos da consciência, ou de generalizações da observação empírica a lhe instigar: “Farinha pouca, meu pirão primeiro”.

Para tanto, eu poderia usar um tubarão assassino e uma sardinha suicida; ou um gavião habilidoso e uma rolinha obesa; ou um político corrupto e bajulador e uma verba incauta; ou uma bunda flácida e uma cueca apertada; ou a cena de um jantar de novela e um telespectador sem café da manhã, almoço e jantar; enfim, muitas são as opções de personagens que podem ser usados em fabulosas narrativas. Mas preferi um urubu faminto e um preá agonizante como protagonistas da nossa fábula no Atacama.

Rendi-me ao currículo do urubu em vista da sua vastíssima experiência no ramo. Na indústria cinematográfica nacional, sempre fez, de forma competente, o papel que o abutre e o corvo ianques possam ter desempenhado nas produções hollywoodianas.

Quanto ao preá, apesar de não ter o know-how do urubu, não pode ser considerado propriamente um amador. Enquanto o urubu dedicou sua vida basicamente às funções de agente do Departamento de Defesa Sanitária e protagonista de fábula, o preá roeu muito por essas matas adentro e atuou como coadjuvante em algumas peças literárias. Também levei em consideração suas esporádicas participações no âmbito das ciências biológicas, como cobaia de laboratório, cobrindo as folgas de hamsters e camundongos, os titulares da área.

Atualmente, em consequência da pandemia corona virótica, o preasbusiness tornou-se uma atividade em ascensão. Os produtores de matrizes apregoam: “Não corra risco com gripe aviária, febre aftosa, crise do avestruz, bicho da goiaba, mosca da carambola, mariposa das flores, formiga cortadeira, cochonilha vermelha, vassoura-de-bruxa, stubborn dos citros, lagarta rosada, bicudo-do-algodoeiro, percevejo, curuquerê, mandarová, lerneose, caspa de coelho, carrapato de tartaruga, gagueira de papagaio, chato, reportagens apócrifas, fake news, derrota eleitoral, entre outras pragas, seja um Preá Master”.

Nestes tempos difíceis, multiplicam-se os criadouros de preá. Os especialistas em preacultura garantem que se trata de um investimento cem por cento seguro. Ao contrário do urubu, sua carne é macia e saborosa — não conheço ninguém que tenha comido urubu, nem mesmo metaforicamente em piada de papagaio, mas dá para imaginar que sua carne não deve ser macia e, menos ainda, saborosa, basta ver que não se trata de uma ave em extinção, muito pelo contrário, proliferam-se a três por quatro.

A pele do preá é usada na confecção de bijuterias. A urina participa da composição de certo soro e, o fino da gastronomia animal (para animal), o seu cocô é adicionado às rações de outros bichos, que, mesmo não sendo porcos, são muito porcos.

Mas o nosso preá teve a sorte de nascer livre, um preá silvestre, característica própria de praticamente todos os urubus (exceto o urubu-rei de zoológico).

A diferença entre um preá nascido e criado em cativeiro e um nativo seria a mesma verificada entre uma criança produzida e desenvolvida em condomínio fechado e um garoto malabarista de sinal de trânsito. Um preá de gaiola não sobreviveria vinte e quatro horas no Atacama.

A fim de viabilizar o projeto, venho tentando obter algum patrocínio. Enviei proposta aos departamentos de marketing e comunicação de diversas empresas. Um amigo meu demonstrou interesse em apoiar tão relevante empreendimento cultural; no entanto, depois de realizar enquete entre a sua clientela, desistiu de bancar o transporte e alimentação de um urubu adestrado (precisa ser um urubu malandro, portanto, brasileiro) até o local da produção, o Deserto do Atacama. Concluiu que a imagem do bicho poderia comprometer a excelente reputação do seu restaurante.

O PFA é realmente um projeto ambicioso, uma megaprodução, porém o meu editor ainda não está convencido do seu avantajado retorno financeiro. Preciso lhe fornecer uma “amostra grátis”, para encorajá-lo a investir arrojado, impetuoso, destemidamente, nessa minha proposta.
Apesar dos pesares, sempre acreditei que quem tem disposição faz e acontece, quem não tem arranja desculpas. Assim sendo, juntei meus escassos recursos a parti para o Norte do Chile, uma das mais inóspitas regiões do Planeta, o Deserto do Atacama, onde se localiza a cidade de Calama, recordista mundial em estiagem ‒ ficou 400 anos (de 1571 a 1971) sem uma gota de chuva.
Aqui começa a nossa fabulosa fábula, fenomenalmente fascinante, forjada na fonte fecunda de um fabulista federicamente felliniano...

Luz, câmera... claquete... ação!

001 — Deserto do Atacama — Área de Gêiseres — dia

Um grupo de animais turistas brasileiros visita o Norte do Chile. Enquanto vacas, bezerros e touros, bodes, cabras e cabritos, ratos e gatos enamorados passeiam por entre os borrifantes gêiseres atacamenhos, um preá solitário distancia-se do grupo e se perde numa trilha que o leva aos confins do Vale da Morte.

Como nas aventuras de Kwai Chang Caine (David Carradine), na série de TV “Kung Fu” (anos 1970), o preá caminha protegendo a vista da intensa claridade do escaldante sol do deserto.

Tema musical: música para funeral incaico, executada em flauta peruana.

Para se ter uma ideia mais realista da paisagem no Deserto do Atacama, há quem garanta que a aventura interplanetária da sonda Mars Pathfinder, que teria pousado em Marte, em 1997, transportando o rover Sojourner, um “carrinho de brinquedo” que rodou pela superfície do planeta vermelho, enviando milhares de fotografias e realizando análises químicas das rochas marcianas, na verdade, teria ocorrido no Atacama. Para outros, isso não passa de teoria da conspiração.

O preá sobe e desce colinas, dunas e barrancos. Para, observa a paisagem, tentando se localizar e encontrar o caminho de volta. Porém, quanto mais caminha, mais se distancia do local onde se perdeu do grupo de animais turistas.

Legenda: Três dias depois...

O preá caminha lento, exausto. Avista um oásis, tipo os do Saara, com palmeiras, tendas coloridas, camelos pastando verdoengas gramíneas, mulheres pegando água num poço, homens polindo suas espadas, tapetes decolando e aterrissando no tapeteporto, gênios atendendo os pedidos dos seus amos, servindo-lhes deliciosas esfihas e gostosas odaliscas...

Preá Agonizante: — Allah seja louvado! Estou salvo! — balbucia com extrema dificuldade.

Efeitos especiais: a imagem do paradisíaco oásis ondula, ondula, ondula e desaparece. Era uma miragem. Novamente a mais inóspita região do Planeta se revela aos olhos do roedor moribundo. Banhado de suor, o preá lambe seu próprio corpo, numa desesperada esperança de saciar a sede. Arrasta-se penosamente por mais uns poucos metros e abriga-se num cantinho sombreado por uma depressão do terreno.

Close: os olhinhos de rato do preá se mexem em círculo, ele tenta fazer o reconhecimento da área a fim de assenhorear-se da dolorosa situação.

Uma gosma marrom atinge a cabeça do preá...

Contrarregra: Ploft!

A baba pegajosa escorre pelo seu rosto até as bordas dos seus minúsculos beiços. Impulsionado pelo instinto de sobrevivência, o pequeno mamífero, agonizando, suga a visguenta substância.

Contrarregra: Shupt!, seguido de Arrrgh!! e Kusp!

Preá Agonizante: — Eca!

O autor-diretor olha para o límpido céu azul anil atacamenho e avista um objeto planando, espiralando numa remoinhadora corrente de ar.

Autor-Diretor: — É uma sacola plástica vazia! (zoom) Não! É uma pipa! (mais zoom) Não! É um superbombardeiro B-2 Spirit fora da rota EUA—Venezuela! (zoom total) Nãããooo! É um urubu faminto! Finalmente vou produzir a minha fábula!

O urubu faminto, dotado de visão de alta resolução, também aplica zoom máximo. Enxerga o preá com a cabeça lambuzada.

Urubu Faminto: — Croac!! (Tradução legendada: Acertei na mosca!)

Preá Agonizante: — Pô! isso é uma tremenda urucubaca!

***

Às cinco da tarde, o autor-diretor tomava chá de cacto desidratado, sentado em sua cadeira diretor, à sombra de um colorido guarda-sol de praia. Celular chamando. Confere a chamada. É o seu editor. Atende:

— Bom dia, chef...

O homem corta eufórico:

— Genial! Quer dizer, gen! Você é o mago da redução de custos!

— Do que você está falando?

— Ora, da ideia de aproveitar o preá turista e usá-lo na produção da fábula. Uma considerável redução dos custos.

— Sim... claro!

— Mas... onde você arranjou aquele urubu?

— Urubu?

— Sim, o urubu que acertou um Tomahawk, ogiva nuclear (risos), na cabeça do preá!

— Ah! o pardal dublê...

— Pardal dublê?!

— Sim, como ministro da Educação, da Saúde e outros interinos, nesse governo que aí está. Aquilo era apenas um ensaio. Passei pela Alfândega com o pardal no bolso. Não pagou passagem, nem precisei de autorização do Ibama.

— Gen! — o homem ficou ainda mais eufórico —. Você é o mago da redução de custos!

— Você já disse isso, mas vai repetir mais uma vez quando souber o que estou aprontando.

— Nem preciso saber! Você é o mago da redução de custos. Pronto, agora conta.

— Estou preparando a maior economia de neurônios de todos os tempos!

— Economia de quê?

— Neurônios.

— Você vai precisar fazer uso desses elementos na produção da fábula? Pensei que era só urubu e preá.

— Eu falei que vou poupá-los e não utilizá-los. Está em voga. Toda a equipe do atual governo tem se utilizado desse recurso, alegam política de austeridade, rigoroso controle dos gastos...

— Ah, sim! Mas como você pretende...?

— Fazer?

— Isso!

— Adquiri um pacote de clichês!

— Dê um exemplo.

— O preá pergunta ao urubu: “Como te chamas?”. O bicho responde: “Faminto, Urubu Faminto”. Sacou?

— Você quer dizer como em “Bond”. É isso?

— Calma, não precisa gastar neurônios. Agora escuta essa. O preá está exausto, porém é duro na queda, não quer bater as botas. O urubu resolve dar um rolé enquanto o bicho fecha o paletó. Mas, antes de alçar voo, diz “Hasta la vista, baby”.

— Quer uma sugestão?

— Manda.

— Diga que o preá respondeu: “Estou ferrado, não tenho onde cair morto”

— Boa, muito boa. Anotei. Mas creio que seja mais apropriado ele dizer: “Mifu! Estou chamando urubu de meu louro”.

— Que tal “com uma mão na frente outra atrás”, hein?!

— “Duas patinhas na frente e duas na bunda” dá um quê de originalidade.

— Com certeza!

— Não. Assim já é abuso. Prefiro “sem dúvida”.

— Tudo bem, pode continuar os ensaios. Vou providenciar o envio de um urubu malandro, brasileiríssimo, adestrado para interpretar o urubu faminto. Mas apresse os trabalhos. Tempo é dinheiro.

— Anotei. Posso até usar “time is money” e mandar a tradução nas legendas.

— Tem carta branca. Você é o mago da redução de custos. Tchau!

Desligou. Também anotei “Ter carta branca”. Fica bem em espanhol: “Tener carta blanca”.

002 — Vale da Morte — Deserto do Atacama — dia

Ao raiar do dia, eis que surge no céu do Deserto do Atacama um urubu legitimamente brasileiro, urubu malandro. Envergadura de grande porte, podendo até ser confundido com um condor.

O preá estava ali, no cantinho sombreado por uma depressão do terreno, prostrado, indefeso, não lhe sobrara forças para mais um passo. Desidratado, não mais suava, portanto estava desprovido de qualquer fonte para saciar a sede. Agonizava. Empregando todos os esforços, conseguiu erguer seus olhinhos de rato.

Ponto de vista: o urubu faminto planando, planando em círculos espiralados, agourento.

Na trilha sonora: “El condor pasa”.

Súbito, o preá ouve uma voz cavernosa ‒ a sonoplastia aplica efeitos ecoicos à voz:

Voz Cavernosa: — Preeeááá... á á á...

Preá Agonizante: — Deus?! Ó, Deus, onde estás que não te vejo?!

Voz Cavernosa: — Que... Deeeuusss que... naaada a a a..., babaca... ca ca ca... Eu... sou a... suuaaa... pulga... atrásss... da orelha, idiooota ta ta ta ta...

Provocada pelo instinto de sobrevivência, uma hipercorrente bioenergética percorre o corpo do preá agonizante, produzindo-lhe um hiperreflexo na patinha esquerda, que avança sobre a orelha direita, alcançando a pulga pela ponta de uma de suas garrinhas e levando-a rapidamente à boca.

Contra regra: Kleck!

* * *

Moral parcial: Nunca perca a oportunidade de se passar por Deus, mesmo que você seja apenas uma pulga arrogante.

Breve, aqui mesmo no Portal Maltanet, a terceira parte do Projeto Fábula no Atacama, que promete muitas emoções nos próximos episódios.

Leia (ou releia) a primeira parte do “Projeto Fábula no Atacama (pouca carniça pra muito bico)”
Aqui:  http://www.maltanet.com.br/v2/literatura/2020/07/06/projeto-fabula-no-atacama

(*)Fernando Soares Campos é escritor, autor de "Saudades do Apocalipse  ̶  8 contos e um esquete", CBJE, Câmara Brasileira de Jovens Escritores, Rio de Janeiro, 2003; e "Fronteiras da Realidade  ̶  contos para meditar e rir... ou chorar", Chiado Editora, Portugal, 2018.   

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