Era uma sexta-feira comum em uma comunidadezinha de uma cidadezinha comum do interior nordestino. A cidadezinha ficava na beira de uma estrada de terra muito movimentada. Era uma dessas cidadezinhas que a gente pensa em não querer viver, dessas cidadezinhas em que a vida morre devagar. Os raios de sol do meio-dia cortavam como facas de fogo... Cada segundo era uma eternidade de queimação no rosto, no corpo e na alma. Não chovia havia muito tempo e a paisagem era desoladora: fome, sede, pobreza. A única certeza que havia era a incerteza...
Na cidadezinha todos sabiam que seria mais um dia penoso. Sabiam que muitos animais – e pessoas – morreriam! As portas ficavam sempre abertas no intuito de amenizar o calor. Os locais mais concorridos eram as bodegas – os chamados “pega bebo”, elas fervilhavam de gente. Lá dentro os problemas tinham solução na bala ou na faca. Na beira da estrada empoeirada as mulheres com suas saias esvoaçantes e imundas tentavam chamar a atenção de motoristas! Pensavam em seus silêncios insignificantes:
– Talvez uma rapidinha seja a garantia de um prato de comida para os filhos que ficaram em casa! Era a triste incerteza da certeza de suas miseráveis vidas mórbidas.
Do outro lado da estrada – disputando território e a atenção dos motoristas – estavam meninas e meninos – de aspecto senil – de corpos esqueléticos, fétidos e desfigurados pela fome e pelo sofrimento da venda do corpo e da alma por uns trocados... Muitas dessas crianças não conheceram os pais, outras não tinham mães, pois eram filhos(as) do absurdo, do estupro. Eram filho(as) de uma penca de pais e mães degenerados, molestadores(as) e molestados(as), eram filhos(as) sem pai e sem mãe, filhos(as) do acaso, filhos(as) de mães vendidas que vendiam seus(as) inocentes filhos(as) por um gole de cachaça ou um prato de comida... Uma realidade surreal que se refletia e se perpetuava nas meninas dos olhos daquelas meninas-mulheres de aluguel ou troca e dos meninos negociáveis – compráveis para um momento de prazer. Mas como fariam outra coisa, se a única coisa que sabiam era fazer aquilo, o tempo todo, mesmo isso parecendo atemporal? As meninas e os meninos tinham os rotos mordidos pelos desejos libertinos de “senhoras” e “senhores” de idade avançada. Toda sexta-feira era assim, eles(as) chegavam em seus carros caros e bonitos. Traziam na mala os doces, brinquedos, panelas, quinquilharias e o consentimento de pais e mães.
Os “bêbados sóbrios em desfaçatez” eram outro espetáculo próprio da cidadezinha! Eram bêbados avessos ao álcool, mas que eram ébrios em desfaçatez. E esses eram os que subiam ao púlpito irreal para proferir em silêncio uma indignação inexistente – talvez em busca do reconhecimento, pois o pleito se aproximava. Todos sabiam que o povo vendera e venderia – sempre que possível – a alma... afinal, o mal é sempre um bom negócio para os de uma “cidadezinha”. A cidadezinha tornou-se moralmente depravada, tornou-se incapaz da capacidade de se tornar algo de bom.
Pelas ruas da velha cidadezinha os velhos mendigos decrépitos e fedorentos causavam repugnância aos jovens que eram velhos freqüentadores do refúgio do anatídeo. Nessas ruas a prostituição era institucionalizada pela instituição familiar dos sem família. Na cidadezinha os roubos aconteciam em plena luz do dia, e nem mesmo os instrutores estavam livres da cercania do banditismo, pois a violência violentava e ladeava mansamente a todos. Desde muito cedo meninos e meninas se tonavam senhores(as) do crime, vendiam usavam drogas como gente grande...
Mas, ninguém mais se importava ou se portava, todos (su)portavam com alegria a tristeza de suas desgraçadas vida patéticas. Ficou claro que a escuridão lembrada a cada dia, jamais seria esquecida, e que a anormal moral era normal, mesmo sendo amoral.
E o sol continuava lançando as facas de fogo sobre a terra seca da cidadezinha... seria um castigo?!?!?!?!?!
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