ENTRE ANJOS E CANGACEIROS

Djalma Carvalho

Aquilo que se oferece a alguém com a intenção de agradar chama-se presente. É uma ação amistosa, gentil, cordial. Ou de retribuição a essa agradável ação. Um brinde, uma lembrança, um mimo. Um livro, por exemplo, será um bom presente, principalmente se se tratar de livro bem escrito, bem elaborado. Livro é fonte de conhecimento e de saber
Há poucos dias, recebi de presente o livro Benjamin Abrahão – Entre Anjos e Cangaceiros (Edição Escrituras, São Paulo, 2012), de autoria do consagrado historiador Frederico Pernambucano de Mello, especialista no estudo da cultura da região do Nordeste do Brasil, com mais de sete obras publicadas sobre fascinantes temas que sacudiram essa tostada e quente região brasileira durante as primeiras décadas do século passado. Décadas de muita violência, de crimes que mancharam de sangue o chão nordestino. Livro bem escrito, recheado de notas e referências bibliográficas, acompanhado de rica iconografia.
O livro conta a vida do sírio-libanês Benjamin Abrahão que desembarca muito jovem no porto do Recife, em 1915, “dizendo-se – segundo o autor – ter nascido em Belém, na Terra Santa, no ano de 1901”. Livrara-se do alistamento militar obrigatório que fatalmente o levaria a integrar tropas do seu país comprometido com a Primeira Guerra Mundial, já em curso na Europa. Chega ao Recife onde ali já se encontram tios e primos exercendo o comércio de miudezas e ferragens por atacado. Já rapaz, torna-se caixeiro viajante, vendendo produtos do comércio dos tios pelo interior pernambucano. Jovem envolvente, sempre bem vestido, de boa formação cultural.
Vida já contada em Baile Perfumado, filme produzido em 1996.
O personagem central do livro é esse sírio-libanês, de vida atribulada, com fim trágico. Nessa perspectiva histórica, surge padre Cícero Romão Batista em Juazeiro, no Ceará, sacerdote místico, seguido por centenas de romeiros e fanáticos. Diz-se que essa condição de milagroso sacerdote se teria tornada pública a partir de 6 de março de 1889, com a transformação da hóstia em sangue na boca da beata Maria de Araújo, fato repetido várias vezes, dito milagre. Juazeiro torna-se cidade de intensa romaria.
Em torno do padre Cícero surge Floro Bartolomeu, médico vindo da Bahia, violento caudilho e político de muitos mandatos no Ceará. Em meados da década de 1930, a Coluna Prestes, com seus revoltosos, transita pelo Nordeste. Por esse tempo, em cena, o convite feito a Lampião para incorporar-se com seu bando às Forças Legais de Combate aos Revoltosos. Em 4 de março de 1926, Lampião e 50 cangaceiros entram, triunfalmente, em Juazeiro, onde são recebidos pelo padre Cícero. Fotografado, Lampião concede entrevista e conversa com curiosos e autoridades. O padre Cícero confere-lhe a patente de capitão honorário das referidas Forças Legais. Porém os cangaceiros de Lampião não chegam a combater os revoltosos, por que nessa data Prestes e seus companheiros já estavam na Bahia, após a travessia do São Francisco. Em 1927, Prestes exila-se na Bolívia.
Voltando ao sírio-libanês, dir-se-á que ele em 1920 já se encontrava em Juazeiro, já amigo do padre Cícero, tornando-se logo mais seu secretário a azucrinar-lhe o juízo e a paciência. À sombra do sacerdote, pratica todo tipo de negócio na cidade, vendendo a romeiros tudo que dissesse respeito ao patriarca, como medalhas, broches, lenços, chapéus de palha. Uma danação. Tudo isso sob o olhar complacente do padre e da reprovação da beata Mocinha, governanta e tesoureira do virtuoso sacerdote.
Com a morte do padre em 20 de julho de 1934, Benjamin Abrahão colhe mecha de cabelos do falecido, passando a vender fios a romeiros por longo tempo. Depois daí, percorre os sertões nordestinos à procura de Lampião para fotografá-lo com Maria Bonita e demais cangaceiros. Por duas vezes consegue filmar o bando de Lampião, mandando fotos para jornais. Seu propósito era enviar a película do filme ao exterior.
Uma vez publicadas, as fotos irritaram os comandantes de volantes e, certamente, os coronéis nordestinos. O sírio sabia onde encontrar Lampião, menos a polícia, apesar de tantos anos passados, quase duas décadas, de crimes e assaltos praticados pelo Rei do Cangaço e seu bando.
Em 10 de novembro de 1937, Getúlio Vargas torna-se ditador com o advento do Estado Novo. É criado o estado unitário e desfeita a federação. Estabelecia o artigo 2º da nova Constituição, chamada de Polaca, o seguinte: “A bandeira, o hino, o escudo e as armas nacionais são de uso obrigatório em todo o país. Não haverá outras bandeiras, hinos, escudos e armas.”
Em pira na Praia do Russel no Rio de Janeiro, ante o Altar da Pátria, em solenidade com a presença de Getúlio Vargas, foram queimadas todas as bandeiras dos estados.
Com o Estado Novo e com as fotos dos cangaceiros publicadas em jornais pelo mundo afora, os coronéis fazendeiros foram perdendo mando e poder. Com os comandantes de volantes irritados, a perseguição a Lampião intensificou-se. Crescia, por motivos óbvios, ódio ao fotógrafo-cinegrafista.
O brutal assassinato de Benjamin Abrahão ocorreu em 7 de maio de 1938, na vila de Pau Ferro, hoje Itaíba, Pernambuco. Pouco tempo depois, ocorreu a morte de Lampião e parte do seu grupo em 28 de julho de 1938, na gruta de Angicos, em Sergipe.
Desse modo, chega-se ao final do livro com a leitura de 277 páginas. Obra de fôlego e competência. Livro escrito com excepcional talento literário.

Maceió, abril de 2019.

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