Paulo Sabino parece ter demorado para publicar um livro de poemas. Demorado, pois o seu convívio com poemas e poetas vem de um passado que transcende as redes sociais. Ou melhor: torna-se visível com o surgimento delas e de sua possibilidade de fazer com que a esfera pública de ideias e conceitos alicerce-se literalmente democrática. A criação de blogues proporcionou a muitos poetas - e nisto encontra-se Paulinho! - a oportunidade de ser conhecido por seus escritos, poéticos ou não.
Paulo preferia, inicialmente, guardar os seus poemas, por simplicidade aparente, talvez, para projetar-se midiaticamente como um grande leitor de poemas. Mas não só: Paulo lia-os e transmutava-os em textos prosaicos de altíssima intimidade com o vernáculo que, por uma re (des)transmutação estética, viravam poemas em prosas, numa apropriação crítica que, no Brasil, muito se percebe, com vasta genialidade, nos ensaios críticos de Antonio Carlos Secchin.
Paulinho queria mais. Criou o seu próprio blogue: "Prosa em Poema"! Ali, em seu sítio literário, expunha o que sentia e pensava sobre o que lia de literatura alheia. Todavia, rarissimamente um poema seu no mundo das redes repousava público. Lembro-me do primeiro (talvez?) em que aí publicou: um poema dedicado à sua mãe ("Conforto na morada"). Com alegria e nada surpreso, constatei, após leitura do seu livro de estreia "Um para dentro, todo exterior" (Bem-te-li, 2018), que chegara essa semana em minhas mãos, a luminosidade de tal poema. E dos demais!
O divulgador da poesia alheia agora estava a ofertar a sua ars poetica para todos, despido de receios ou medos, de pretensões estéticas, de regras rígidas. Tudo isto me vez lembrar de Jorge Luis Borges que, sendo um magnânimo escritor, preferia dizer sempre "que otros se jacten de los libros que les ha sido dado escribir; yo me jacto de aquéllos que me fue dado leer". Parafraseando Borges, digo: que bom que o livro de Paulo Sabino me foi dado para ser lido!
Em 2018, Paulo completara exatamente 42 anos! Não se espantem se lhes contar que a obra vem com 42 poemas. Proposital ou não, isso me soa simbolicamente importante. Esteticamente significativo porque parece dizer-nos, de alguma forma, que toda a intimidade de Paulinho se exterioriza demasiadamente humana, pois ele já declarava em primo verso: "nada a esconder"!
Sem se preocupar rigorosamente com questões de métricas, rimas e ritmos, Paulo se lança na arena poética com poderosas imagens íntimas. Intimidade que não se resume ao eu mais profundo ou àquela revestida de alheamento ao mundo em redor. Paulo, sem ser panfletário, denuncia literariamente o horror que se traveste por trás de preconceitos de sexo e cor, já que "todas as coisas" estão "ao alcance dos dedos".
O cotidiano, o seu, é visitado com versos de uma delicadeza veraz, ainda que se possa, com Pessoa, duvidar de tudo que cria um poeta. Ou concordar com Camões quando canta que "todo mundo é composto de mudança". Numa repetição do verbo mudar, o bardo carioca atesta: "a gente muda muda muda/sempre muda". Claro está que toda mudança, categoricamente no tempo e no espaço, nos assombra por ser novidade, mesmo que algo insista em perdurar ou que, por uma relação transcendental, perdure "através do impreciso atravessar". O leitor, de início, sente-se atravessado pela poética do livro o "tempo inteiro", porque "a vida vale a vida pelo que possui de esperança".
Se é certo e fato que "a gente erra" (com ambíguo sentido, por favor!), Paulo acertou. Porque a Poesia, a grande poesia, é uma viagem insolitamente desconcertante, onde as Μοῦσαι parecem alertar aos poetas que é preciso cantar "tudo que é vida", "pois que tudo passa". Apenas a bela poesia é capaz de resistir às intempéries da existência. Se o Imperador da Língua Portuguesa, Vieira, diz que "atreve-se o tempo a colunas de mármore", parece ser verdadeiro já que todos os impérios ruíram ante, por exemplo, a poesia de Homero, Safo, Horácio e tantos outros e outras. O tempo não tem força contra a poesia. Ao contrário, o verso pode mesmo engendrar o Tempo, quaisquer tempos!
Se somarmos tudo em nós e sentirmos tudo adentro in totum, talvez fosse impossível dar-nos inteligível aos outros, porque um emaranhado de sensações e sentidos acumular-se-ia e amalgamar-se-ia além "das ambições e projetos deste mundo". Como Kant afirmara em Kritik der reinen Vernunft, "toda percepção externa prova imediatamente alguma coisa de real no espaço". Entretanto, a poesia não quer saber de verdades e realidades, ainda que delas se sirva.
A poesia, como uma finalidade sem fim, é destituída de interesses, e nisto reside a sua grandiosidade. O poema, como objeto estético, só quer ser poema e diz ao poeta quando alcança aquele patamar onde a beleza existe.
Onde a beleza nos acerta em cheio, com seu fulgor de ímã pronto para capturar o que quer que seja. A beleza da poesia dura, perdura e perpassa, por isso Hannah Arendt afirma que "a tarefa do poeta e historiador (postos por Aristóteles na mesma categoria, por ser o seu tema comum práksis) consiste em fazer alguma coisa perdurar na recordação. E o fazem traduzindo práksis e léksis, ação e fala, nesta espécie de poíesis ou fabricação que por fim se torna a palavra escrita." A bela poesia sempre é lembrada, memorada, rememorada. A percepção da beleza independe de interpretações.
A poesia de Paulo Sabino é bela. E será lembrada por sua beleza. Ele, o poeta, está confortavelmente alojado na morada onde vates de outras gerações abrigaram-se e abrigam-se, são guardados per si, sem precisar estar em conflito ou contradições. A lógica da poesia é ser poesia. E, sendo apenas o que é, vinga infinita, bela e memorável. Eric Voegelin, em "Order and history. Vol. II. The world of the Polis" constata que "the poets sing what is memorable; and the life of man reaches its climax, even in suffering, when his action and passion is worthy to be sung"
Repito: a poesia de Paulo Sabino é bela. Recomendo que o seu belo livro seja lido, relido. Só assim poderemos contemplar a sua imensidão, para, em contemplação estética (lembrem-se de que a palavra αισθητική/estética, em seu sentido grego original, quer dizer sensação! ), desvendar o caminho a ser vislumbrado, sentido. Isto é, "a poesia livre de impropério" em seu delicioso mistério. Como cantou Pessoa: "Sentir? Sinta quem lê!".
Adriano Nunes
Comentários